Opinião de Inês Sá
Tínhamos entrado em janeiro. Do alto dos meus 13 anos, o voo era cada vez maior e mais rápido. Nessa altura tudo era fugaz e urgente. A rotina era-me completamente desconhecida, os dias eram todos diferentes e cada dia era uma nova descoberta.
Naquela noite os jeans tinham que ser aqueles, fosse de que forma fosse… O frio que se fazia sentir nesta época a Norte de Portugal Continental não ajudava minimamente a secar a roupa, mas nada que não se resolvesse com uma voltinha na máquina de secar… Estava atrasada. Finalmente chegara o dia da festa e as calças teimavam em não secar! Deixei-me ficar em frente da máquina, o calor que dela saía apaziguava o frio das minhas mãos. Tocam à campainha. Corri, convencida de que teria de pedir que aguardassem um bocadinho. Reconheço dois dos três homens “enfatados” que me cumprimentavam de forma exageradamente piegas, à medida que avançavam em direção à sala. Eram amigos do meu pai. Percebi naquele momento que algo havia acontecido, mas em momento algum percebi que aquele dia iria mudar a minha vida para sempre. A festa perdera toda a sua magia mesmo sem nunca ter começado, os jeans afinal podiam continuar molhados, aquele abraço acabara de alterar todas as minhas prioridades.
O piso estaria com algum gelo, um dos condutores falava ao telemóvel, o carro estava parado na berma da autoestrada, provavelmente com alguma avaria, nevoeiro cerrado, ele sempre gostou da velocidade! As versões multiplicavam-se à medida que a notícia corria pela família, pelos vizinhos e pelo nosso círculo de amigos. Certo era o facto de dois carros terem caído por uma ribanceira, embrulhados um no outro, até serem amparados pela vegetação existente naquele mato. Encarcerados! – Dizia um. Em estado muito crítico! – Repetia-se em diferentes vozes.
Pedi que me levassem a vê-lo. Explicaram-me das mais diversas maneiras que tal desejo não seria, por enquanto, possível de realizar. Tinha tanto para lhe dizer… precisava do seu colo, daquele que raramente me deu por teimar que o respeito seria também fruto da distância. Decidi então escrever. Não me recordo o quê, muito provavelmente tentei colocar em palavras as lágrimas que teimavam em cair. Coloquei num envelope e fui entrega-lo à minha super mulher, que desde aquele dia, que inicialmente até seria um dia de festa, se havia transformado num farrapo. Pedi-lhe que entregasse a minha carta assim que lhe fosse permitida a entrada nos Cuidados Intensivos. Ela baixou-se, as pernas tremiam tal era o cansaço, o sofrimento, o medo. Pausadamente explicou-me que o estado do meu pai impossibilitava que a minha carta fosse lida. Contornei. Pedi-lhe que lhe lesse, ao que ela me respondeu que também ele não ouviria. Está em coma profundo. – Sussurrou-me. Temos que aguardar.
Passaram-se dois meses até chegar finalmente o dia do nosso reencontro. O cheiro intensivo a éter entranhava-se no meu corpo, apertei-lhe a mão, pedi-lhe que fossemos mais devagar… precisava de me recompor, até porque os apelos para que não me comovesse junto dele, ecoavam com maior intensidade na minha cabeça, à medida que nos íamos aproximando. Parámos. Algumas camas ocupavam aquele espaço. Senti-me observada sem saber porquê. Insisti para que continuássemos, sentia-me suficientemente composta. Os olhares cruzaram-se, uma e oura vez… Era ele. Era ele ali ao meu lado desde que fui propositadamente parada ali. Não lhe conheci o rosto, totalmente transfigurado e retalhado pelas diferentes cirurgias a que já tinha sido submetido, não tinha cabelo e contrariamente à estrutura física do meu pai, homem alto e forte, aquele senhor era magro, muito magro. Reconheci-lhe as mãos, grandes e protetoras, dignas de um homem admirável e de muito respeito. Apertei-lhe a mão com a pouca força que percebi restar-me.
Foi este o dia em que, pela primeira vez, o meu mundo desabou. Foi este o dia, ou uma pequena fração do dia, que eu recordei quando há tempos (coincidências da vida) me pediam que fizesse um pequeno texto sobre Prevenção Rodoviária e eu pensei que partilhar um fragmento deste episódio da minha vida, seria porventura o melhor contributo que eu poderia dar a quem conduz nas nossas estradas.